Um aviso bem no come?o da coluna para evitar dissabores: esta coluna n?o traz novidades, n?o ensina a fazer coisa alguma, n?o comenta qualquer nova tecnologia. Ao contr?rio, ? um mero conjunto de divaga??es sobre a atividade de montagem de micros, que est? desaparecendo, temperada com alguns coment?rios sobre como eram as coisas no passado. Mais nada. Portanto, dado este aviso, l?-la at? o final para ent?o reclamar de seu conte?do n?o depor? a favor do quociente intelectual do reclamante.
Agora, vamos a ela.
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Meu primeiro PC com processador 8088 foi comprado em uma loja de um pequeno shopping de inform?tica que n?o mais existe nos idos dos anos oitenta do s?culo passado, em plena vig?ncia da lei da reserva de mercado da inform?tica.
Nunca ouviu falar dela? Bom para voc?. Foi uma lei engendrada em plena ditadura militar que enquanto vigeu gerou imensos lucros a seus benefici?rios, meia d?zia de fabriquetas que produziam m?quinas de oito bits e ainda assim ultrapassadas, e manteve suas v?timas ? n?s, os cidad?os brasileiros que se interessavam por inform?tica e, sobretudo, as empresas ? vivendo em um mundo tecnol?gico que mantinha um descompasso de pelo menos dez anos em rela??o ao dos pa?ses civilizados. E no qual a ?nica forma de escapar desta defasagem era apelar para a ilegalidade.
Isto porque a lei podia ser condensada em uma frase: era proibido possuir qualquer equipamento, dispositivo ou objeto de alguma forma ligado ? inform?tica que n?o fosse fabricado no Brasil. Nada. Inclusive, por exemplo, disquetes. E como n?o precisavam concorrer com as empresas estrangeiras, as poucas que havia no Brasil se dedicaram com afinco a produzir tudo o que ca?a na obsolesc?ncia no mercado internacional, se locupletando dos direitos exclusivos que lhes eram concedidos pela mais est?pida das iniciativas dos governos militares ? o que a eleva a um n?vel de estupidez raramente alcan??vel.
A alternativa era apelar para o contrabando. Todo o mundo tinha seu ?contrabandista de confian?a?, o que hoje parece um oximoro mas, ao menos naquela ?poca, fazia todo sentido. Sua contribui??o para a educa??o t?cnico-cient?fica do pa?s foi t?o grande que Cora Ronai costuma dizer com sua fina ironia que ?em todo campus universit?rio do Brasil deveria haver uma est?tua homenageando o contrabandista desconhecido?. E tinha raz?o.
A coisa atingiu tais dimens?es que n?o havia contrabandista que chegasse. Ent?o vicejou o com?rcio de artefatos contrabandeados: lojas que, em princ?pio ?s escondidas, mas nem tanto quanto seria necess?rio se seus donos n?o tivessem as costas quentes, vendiam produtos de inform?tica legitimamente importabandeados por profissionais do ramo. Que forneciam desde pe?as avulsas at? m?quinas inteiras montadas com material fornecido por aqueles bravos profissionais do contrabando.
Meu primeiro PC foi adquirido em uma destas lojas. Montado.
No in?cio, nossa rela??o foi um tanto conflituosa (ali?s, pensando bem, continua at? hoje; o que mudou foi a natureza dos conflitos). O micro teimava em n?o fazer o que eu queria e eu n?o tinha quem me ensinasse a us?-lo. N?o havia cursos de curta dura??o, a literatura nacional era de p?ssima qualidade e os artigos e colunas nos jornais eram escritos mais para alardear o quanto seus autores eram s?bios do que para repassar conhecimentos (a ?nica exce??o era a coluna ?Circuito Integrado? da Cora Ronai , ent?o publicada no Jornal do Brasil, na qual ela n?o somente tinha a cara de pau de admitir que n?o sabia coisas como tinha a coragem de perguntar como seriam, o que gerava respostas de alguns leitores que ela ent?o publicava e que muito me ajudaram a aprender grande parte do que sei nesta ?rea; alguns anos depois eu passei a ser um daqueles leitores que respondiam.
Mas o fato ? que comecei a estudar sozinho. Garimpava livros em ingl?s nas livrarias do Centro e, quando viajava, voltava (literalmente) sobrecarregado deles. Tanto com eles aprendi que acabei escrevendo alguns. E assim se resolveu o problema de usar o micro.
Mas montar era outra coisa?
Minhas leituras me deixaram perceber que, por mais
Mas h? coisas que n?o se aprendem em livros. Ou melhor: se aprendem, mas o esfor?o dispendido no aprendizado ? imensamente maior que o exercido em uma aula pr?tica.
Resolvi, ent?o, fazer um curso.
?Est?vamos, ainda, na segunda metade da d?cada dos oitenta do s?culo passado. Internet ao alcance do p?blico, n?o havia. Havia, em S?o Paulo, dois jornais que mantinham um suplemento semanal sobre inform?tica. E em um deles descobri um curso de montagem de micros com dura??o de uma semana.
O problema ? que o curso era l? em S?o Paulo. Mas meu interesse sobre o assunto era t?o grande que resolvi sacrificar uma semana de f?rias e fui a S?o Paulo fazer o curso.
O professor, Antonio, figura simp?tica e dotado de uma calma e paci?ncia infinitas, ? um dos respons?veis pelo fato de eu aqui estar escrevendo estas bobagens, de modo que quem n?o gostar pode reclamar com ele ou com a Cora (que acabou se tornando minha amiga e editora). Mas o fato ? que aprendi.
Meu segundo micro foi um AT 286 montado por mim. Aproveitei a visita de um amigo americano ao Brasil e encomendei a placa-m?e. O resto foi comprado por aqui mesmo. Levei um par de dias para montar tudo, instalar o sistema e configurar. E o usei por um bom tempo at? aparecerem os 386.
Durante o curso, talvez a frase proferida pelo professor que mais me causou esp?cie foi relativa ? simplicidade da tarefa. Disse ele, logo na primeira aula, que montar micros era uma atividade t?o simples que, ao longo dos anos, se tiv?ssemos que resolver algum problema de montagem, provavelmente seria a falta de parafusos adequados. O que me levou a pensar que certamente ele estaria exagerando para dar ?nimo aos alunos.
N?o estava. E me lembro desta frase cada vez que estou montando um computador e n?o consigo encontrar os parafusos certos para esta ou aquela placa.
Sim, pois de l? para c? perdi a conta dos computadores que montei.
Montar um computador ? uma atividade fascinante. Juntar um punhado de pe?as e placas, ajust?-las, configur?-las, instalar o sistema operacional e de repente ver aquilo tudo se transformar em um micro funcionando e rodando programas ? como ver a vida ser gerada a partir da mat?ria inerte. Traz um raro prazer. Faz lembrar o do jardineiro que enterra uma semente aparentemente inerte em um naco de terra e a v? germinar, crescer e tornar-se uma planta que frutifica. Com a vantagem que um micro se monta em uma hora, se tanto, enquanto a semente demora dias para germinar.
Resultado: fora ?notebooks?, tabletes e afins, montei todos os meus micros desde ent?o. E dezenas, talvez centenas de outros para amigos e parentes. Apenas pelo prazer de mont?-los.
Minto. N?o s? pelo prazer de mont?-los mas tamb?m pelo prazer de aprender, de ?p?r a m?o na massa? instalando e configurando coisas novas, visto que a evolu??o tecnol?gica tornou a tarefa de montar um micro de mesa moderno, multinuclear, de 64 bits bastante diferente da montagem de um PC XT velho de trinta anos. Diferente e, paradoxalmente, mais simples: a tecnologia ?plug-and-play? acabou com o pesadelo de configurar endere?os e interrup??es e os novos dispositivos recentes que podem ser montados ?? quente? (ou seja, sem precisar desligar o micro) facilitaram um bocado a montagem.
Quer dizer: a tarefa, que j? era singela quando os computadores eram simples, paradoxalmente tornou-se ainda mais singela ? medida em que os computadores foram se tornando mais complexos. Coisas da tecnologia?
Pois esta atividade est? desaparecendo.
Primeiro, sumiram os montadores avulsos, gente que anunciava nos jornais que montava micros ?sob medida? para os clientes. Uma atividade que floresceu enquanto durou a malfadada reserva de mercado e feneceu pouco ? pouco na medida que micros ?de marca? foram se tornando comuns e seu custo suport?vel.
Depois, talvez em consequ?ncia disso, os cursos de montagem de micros se rarefizeram. Sim, porque se nos anos oitenta tive que ir a S?o Paulo para encontrar um, na d?cada seguinte eles pulularam por todas as capitais. Aqui no Rio de Janeiro havia dezenas, todos muito bons, alguns excelentes como os de meus amigos Abel Alves e La?rcio Vasconcelos. Hoje ainda os h?, mas s?o poucos. E ainda assim, por raz?es t?cnicas e de mercado, tendem a desaparecer.
Sim, porque os ?notebooks? est?o ocupando o nicho dos micros de mesa e n?o se monta um ?notebook?. Este, j? vem pronto com quase todos os seus circuitos integrados aos da ?placa-m?e?, portanto n?o h? muito o que montar. E como, para aliviar peso e reduzir volume, os encaixes dos componentes s?o t?o precisos que, se montados fossem, a tarefa se assemelharia mais ? resolu??o de um quebra-cabe?as que ? montagem de um computador.
E os micros de mesa est?o desaparecendo.
Hoje, nos ambientes dom?sticos, ? muito mais comum se encontrar micros port?teis que ocupam menos espa?o quando em uso e praticamente nenhum quando em repouso. At? mesmo nos ambientes empresariais se observa esta tend?ncia.
Quem hoje usa PCs s?o usu?rios remanescentes da era do byte lascado, como este que vos escreve, e algumas categorias espec?ficas, como os aficionados por jogos de computador, os ?gameiros?, cujas m?quinas devem ser particularmente poderosas a atender a exig?ncias que n?o s?o satisfeitas pelas m?quinas dispon?veis no mercado. E isso enquanto os consoles de jogos n?o acabarem com seus micros de mesa.
No que me diz respeito, sei que vou continuar montando os meus, embora cada vez mais raramente (ainda mantenho minha bancada, como se v? na Figura 1 l? de cima, mas bancada arrumadinha demais ? sinal de pouco usada). Faz?-los sob medida para minhas prefer?ncias, com controladores de v?deo que suportem tr?s monitores, com mais de um acionador de discos ?ticos, com mem?ria a dar com pau e com o processador que me aprouver. E, de vez em quando, tirar ou botar alguma coisa dele para atender uma ou outra necessidade extempor?nea. O que ? praticamente imposs?vel com um ?notebook?, por melhor que seja ele.
Mas desconfio que dentro de algum tempo eu e os gameiros seremos os ?nicos a usar ?micro montado?.
O que ? uma pena, j? que a atividade ? t?o prazerosa.
B. Piropo
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