Antes de tudo, uma informação aos que estranharem encontrar nesta coluna tantas menções a pesquisas médicas: pesquisas científicas são pesquisas científicas não importa que campo do conhecimento humano elas abordem. Portanto o que é dito adiante vale para qualquer tipo de pesquisa técnica ou científica, médica ou não. A diferença essencial e, evidentemente, importantíssima, consiste no fato de que esconder resultados negativos de pesquisas médicas pode implicar – e, como se verá no texto, efetivamente implicou – perdas de vidas humanas, enquanto fazer o mesmo com resultados de pesquisas na área tecnológica provavelmente não implicará tais riscos.
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Mas certamente implicará atrasos na evolução de tecnologias, desperdício de valiosos recursos no campo das pesquisas científicas pela eventual repetição por outros pesquisadores das mesmas pesquisas que levarão a resultados igualmente negativos (e que provavelmente também não serão publicados) e perda de tempo, trabalho e dedicação de pesquisadores que poderiam estar buscando caminhos diferentes. Portanto o assunto cabe perfeitamente em uma coluna dedicada à tecnologia, como esta.
Isto posto, vamos ao que interessa.
Você conhece o guaraná. Não me refiro ao refrigerante (que, por sinal, contém muito pouco guaraná) mas ao fruto, Paulinia cupana, cujo extrato está sendo consumido cada vez mais em todo o mundo por ser considerada uma substância estimulante, com efeitos positivos sobre o comportamento, bem estar e capacidade de aprendizado humano. Há, inclusive, preparações contendo extrato de guaraná sendo comercializadas como medicamentos.
Mas qual será a intensidade de seus efeitos?
Há um par de anos os cientistas Gianluca Ivan Silvestrini, Franca Marino e Marco Cosentino, do Centro de Pesquisas sobre Farmacologia Médica da Universidade de Insubria, Itália, com o intuito de demonstrarem as virtudes medicinais do guaraná, decidiram pesquisar o assunto através da aplicação de testes padronizados capazes de quantificar os efeitos da substância quando ministrada em humanos. Organizaram então um experimento no qual 27 voluntários saudáveis se submeteram à ingestão três vezes ao dia por cinco dias consecutivos de 350 mg seja de uma preparação comercial de extrato de guaraná, seja de uma substância neutra (ou placebo). Os indivíduos que recebiam o medicamento e os que recebiam o placebo eram escolhidos aleatoriamente e não tinham conhecimento do que estavam ingerindo. No sexto dia todos foram submetidos a uma bateria de testes para medir seu bem estar psicológico, estado de ansiedade e humor (há testes padronizados para estes fins) e os resultados obtidos com os indivíduos que ingeriram o extrato de guaraná foram comparados com aqueles obtidos pelos que ingeriram o placebo.
A comparação indicou que não houve evidência de que a administração do extrato do guaraná tenha provocado qualquer efeito sobre a sensação de bem estar psicológico, estado de ansiedade e humor dos indivíduos submetidos aos testes.
Em suma: a pesquisa deu um resultado negativo.
Pergunto, então: diante disto, o que deveriam os pesquisadores fazer? Considerar que, por não ter oferecido um resultado positivo, a pesquisa foi destituída de valor e, portanto, não haveria razão de publicá-la em um periódico científico? Ou publicar os resultados, mesmo não sendo favoráveis?
A questão não é tão simples quanto parece.
Para começar, não é fácil decidir pela publicação de uma pesquisa que não deu o resultado esperado e que há de ter frustrado a equipe de pesquisadores.
Depois, periódicos científicos definitivamente preferem publicar tentativas bem sucedidas e raramente aceitam um trabalho sobre uma pesquisa com resultado negativo.
E, finalmente, quase sempre quando uma pesquisa oferece um resultado negativo, algum interesse econômico é contrariado. No caso acima relatado, a publicação do resultado não interessa à empresa que fabrica e comercializa a preparação medicinal contendo extrato de guaraná, mas como ela nada teve a ver com a pesquisa, não tem como influir na decisão. Porém, em um grande número de casos, a empresa interessada participou da pesquisa, geralmente como financiadora, e pode exercer forte influência sobre a publ
O resultado é que, em um detalhado trabalho publicado no periódico Scientometrics em setembro de 2011, intitulado “Negative results are disappearing from most disciplines and countries”, Daniele Fanelli confirma a tendência de redução paulatina da publicação de trabalhos com resultados negativos e cita diversas consequências indesejáveis desta tendência, dentre as quais o fato de que um sistema que desfavorece resultados negativos não apenas distorce diretamente a literatura científica como poderia também desencorajar projetos de alto risco e exercer pressão sobre os cientistas para fabricar ou falsificar dados.
O estudo analisou 4600 trabalhos publicados entre 1990 e 2007 em diferentes áreas científicas, medindo a frequência com que aqueles que declararam como objetivo “testar uma hipótese” confirmaram a hipótese testada, e concluiu que a frequência de resultados positivos cresceu 22% no período, como mostrado na curva da Figura 1, obtida no referido trabalho.
Já no trabalho “No result is worthless: the value of negative results in science” publicado no sítio BioMed Central, seus autores Jian Tang e Renata Curty discutem as razões pelas quais a publicação de resultados negativos vem diminuindo. Dentre elas citam o fato de que não obter um resultado positivo pode prejudicar a reputação dos pesquisadores passando a ideia que o trabalho foi mal planejado ou que os responsáveis não dispunham de uma base de conhecimentos suficientemente sólida para estabelecer uma hipótese robusta sobre o assunto a ser testado. Outra, já mencionada acima, é o fato dos pesquisadores serem desencorajados de submeter para publicação resultados negativos devido à maior probabilidade de serem recusados pelos responsáveis pela seleção dos trabalhos publicados em periódicos científicos. Não obstante, afirmam Tang e Curty, a ciência evolui de acordo com os resultados de testes que podem resultar em confirmação ou refutação de hipóteses, e a ausência de correlações antecipadas também deve ser computada como resultado importante e “publicável”, já que contribui igualmente para o avanço da ciência.
Sobre o assunto, recomendo com veemência assistir o vídeo da palestra do médico Bem Goldacre publicado pelo Ted Talks no YouTube. Goldacre discute exatamente o tema da relevância da publicação de resultados de pesquisas mesmo quando negativos e cita um exemplo emblemático: a pesquisa realizada em 1980 sobre a droga Lorcainida, uma substância normalizadora do ritmo cardíaco desenvolvida para ser administrada a pacientes que sofreram ataques cardíacos com o objetivo de acelerar sua recuperação.
A pesquisa usou um grupo de cem pacientes dos quais metade foi tratada com Lorcainida e a outra metade recebeu um placebo. Do grupo de cinquenta pacientes que recebeu Lorcainida, nove faleceram. Do grupo de cinquenta que receberam o placebo, apenas um faleceu. O desenvolvimento da droga foi suspenso e ela jamais foi comercializada. Mas os resultados (negativos) da pesquisa jamais foram publicados.
Ao longo da década de 1980 outras companhias farmacêuticas tiveram ideia semelhante: fabricar drogas com efeitos similares aos da Lorcainida para normalizar o ritmo cardíaco de recentes vítimas de ataques do coração. Estas drogas foram comercializadas e usadas abundantemente durante os anos oitenta do século passado. Infelizmente, seus efeitos eram bastante semelhantes aos da Lorcainida, mas como não havia dados publicados sobre eles, demorou-se para estabelecer uma correlação entre as mortes e os efeitos das referidas drogas. Em consequência disto, mais de 100 mil pacientes morreram desnecessariamente apenas nos EUA (isso mesmo; por extenso, para não haver dúvidas: cem mil mortes foram atribuídas ao uso destas drogas).
Em 1993 os autores da pesquisa original, cujos resultados não foram divulgados, vieram a público com um pedido de desculpas. O pedido, cujo texto aparece na Figura 2, obtida no vídeo da palestra do Dr. Goldacre publicado no YouTube, é aqui livremente traduzido: “Quando levamos a efeito nossa pesquisa em 1980 concluímos que a alta taxa de mortalidade ocorrida no grupo que tomou Lorcainida foi efeito do acaso. O desenvolvimento de Lorcainida foi abandonado por razões comerciais e por este motivo a pesquisa jamais foi publicada. Ela é hoje um bom exemplo do favorecimento da publicação de resultados positivos. A publicação dos resultados obtidos pela pesquisa poderia ter fornecido um aviso precoce de que poderia haver problemas adiante”.
E este é apenas um dos exemplos do assustador relato do Dr. Goldacre. Há outros, igualmente sinistros, como o da droga que foi submetida a sete testes comparativos contra placebos dos quais o único publicado foi aquele que evidenciou resultados mais positivos, embora os seis restantes tivessem abarcado um número muito maior de voluntários. Ou o exemplo da droga Oseltamvir, conhecida comercialmente como Tamiflu, sobre a qual muito se falou há poucos anos durante a eclosão de uma epidemia de gripe, que teve publicados os resultados de duas pesquisas favoráveis, enquanto outros oito, que permitiam concluir que os efeitos da droga poderiam não se manter por 30 horas conforme se acreditava, jamais vieram a público. Se você tem familiaridade com o idioma inglês, recomendo veementemente assistir o vídeo da entusiasmada e amedrontadora palestra do Dr. Goldacre.
Mas felizmente ainda há esperança. Pelo menos no campo da biomedicina.
Isto porque há cerca de dez anos começou a ser publicado o “Journal of Negative Results in Biomedicine”, editado pelo Dr. Bjorn R Olsen, da Harvard Medical School, cujo propósito declarado é “oferecer uma plataforma para publicação e discussão de resultados inesperados, controversos, provocativos e/ou negativos segundo o contexto dos conhecimentos atuais”.
Este periódico é um gigantesco passo adiante. Foi nele que colhi o exemplo de pesquisa com resultados negativos, a efetuada com o extrato do guaraná citada no início da coluna. O trabalho “Effects of a commercial product containing guaraná on psychological well-being, anxiety and mood: a single-blind, placebo-controlled study in healthy subjects”, de Gianluca Ivan Silvestrini, Franca Marino e Marco Cosentino, foi devidamente publicado no “Journal of Negative Results in Biomedicine”.
Em suma: os pesquisadores (e não apenas os da área biomédica) devem passar a considerar que o resultado negativo obtido por uma pesquisa não é um “mau resultado”. É apenas um resultado que demonstra que tal ou qual suposição era equivocada e cuja contribuição para o progresso da ciência e tecnologia não é necessariamente menor que o de uma pesquisa com resultado positivo.
Na verdade, em alguns casos, pode mesmo ser maior. Até o século XVII se acreditava que o espaço interestelar era constituído pelo éter, um “fluido imaterial hipotético que permearia todo o espaço e que se supunha necessário à propagação das ondas eletromagnéticas” (definição do Houaiss). E esta hipótese, tida como certa, orientava os trabalhos científicos da época.
Na década de 1880 os físicos Albert Michelson e Edward Morley levaram a cabo uma longa série de pesquisas buscando comprovar a existência de tal fluido. Apesar de seu grande empenho, nenhuma das pesquisas logrou demonstrar que a hipótese era verdadeira. Não obstante, alguns anos mais tarde decidiram publicar estes resultados negativos no “American Journal of Science”.
A constatação da impossibilidade de demonstrar a existência do éter causou grande impacto na comunidade científica, provocou a realização de novos experimentos científicos e a formulação de novas hipóteses.
Inclusive uma que possibilitou confirmar uma então nova teoria proposta por certo Albert Einstein. Essa mesma: a Teoria Especial da Relatividade.
Como se vê, nem todo resultado experimental negativo é desprezível.
B. Piropo
PS: Com os agradecimentos ao amigo Paulo Couto, que chamou minha atenção para o assunto desta coluna.
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